Stevan Gaipo
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A vida triste de um boleto

Postado em 30 de janeiro de 2020 por Stevan Gaipo

Todo mundo fala sobre o quanto é ruim receber um boleto e sobre o quanto é ruim ter que pagar um boleto, mas ninguém pensa no outro lado dessa história: o lado do próprio boleto. Acha que ele gosta da vida que leva? Nossos repórteres acompanharam a trajetória de um boleto e trazem informações exclusivas e nunca antes mostradas.

Antes de ser boleto ele é apenas um rolo de papel, com expectativas acerca do seu futuro como as de qualquer jovem humano candidato ao Enem. São muitas as possibilidades de emprego: pode ser papel de revista, de jornal, de receituário médico ou pode ser utilizado para uma criança fazer um desenho indecifrável que os pais vão dizer que tá lindo. Se virar papel A4, pode tanto ser usado para a impressão de um discurso presidencial quanto ter um triste destino se tornando um mero papel de rascunho.

Quando chega na gráfica, o jovem papel logo percebe que algo será impresso nele, mas só saberá seu destino depois que a tinta já tiver impregnada em sua superfície. Ao ver nos colegas a frente dele a logo da TIM, o papel percebe que se tornou boleto. É um pesadelo, no mundo dos papéis muito se fala sobre a vida dura de boleto. Pior ainda é quando o boleto vê o endereço escrito nele e percebe que virou um boleto endereçado a um bairro pobre. Aí sim sua jornada será longa e incerta.

É que boleto endereçado a bairro rico rapidamente é pago e vai para a pastinha de boletos pagos se juntar aos seus familiares, mas boleto de bairro pobre não. No bairro pobre ele fica lá, dias e mais dias grudadinho na geladeira por um poderoso imã, aguardando a família reunir dinheiro para tirá-lo dali e finalmente pagá-lo. Ele sabe que não há a menor chance de ele sair dali antes de sua data de vencimento. Vai ficar afixado naquela geladeira aguentando a cara de desgosto de todos da família cada vez que o virem. Ele sabe que ninguém naquela casa gosta dele. Ele sente o desprezo e a tristeza de todos quando o encontram na caixinha do correio e aguarda ansiosamente pelo momento de ir para a pastinha de boletos pagos, onde poderá estar ao lado de seus entes queridos, que passaram pelo mesmo sofrimento.

O pior é quando um boleto chega na geladeira e encontra lá o boleto do mês passado. Aí sim ele sabe que vai ficar naquela geladeira por muito, muito tempo. Pelo menos terá a companhia do boleto do mês anterior por alguns dias, ou talvez por muitos dias. Talvez até chegue o boleto do mês seguinte para fazer companhia aos dois.

Quando finalmente chega o dia de ser pago, o boleto se sente muito feliz. É como um detento saindo da cadeia. Vai respirar ar fresco da rua até a lotérica, vai passar naquela maquininha de pagamento que faz uma cosquinha gostosa, e depois vai voltar para casa, onde se juntará aos seus familiares na pasta de boletos pagos. Ali ele vai passar seus dias como boleto aposentado, até talvez um dia sair para ser usado como comprovante de endereço.